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Joel Neto

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Desejei ter um microscópio apenas para gozar o pânico daqueles olhinhos

Novembro 13, 2017 POR joelneto.com Deixe um comentário

Lugar dos Dois Caminhos, 3 de Novembro

Hoje o Melville apanhou um grilo. Parece o início de uma crónica de alguém sem uma ideia para uma crónica, mas não é. O grilo veio da garagem, no meio da lenha, há umas duas semanas. Durante todo este tempo, não nos deixou dormir uma noite descansada. E, quando o Melville o apanhou, fizemos uma festa.

O Melville era o maior interessado, aliás. Costuma dormir na sala, ao lado da lenha. Às vezes estávamos a ver televisão, os cães ressonando brandamente em volta, e lá vinha o grilo:
– Cri-cri.

Havia um sarcasmo no modo como fazia aquele cri-cri. Porque, assim que dava por confirmado que pôr-se a cantar não o matava, enchia os pulmões e já ninguém o parava:
– Cri-cri-qui-qui.

(E por aí fora, que isto já leva a sua conta de onomatopeias.)
Era nesse momento que o Melville, qual cavaleiro em socorro da dama, salvo que a dama era ele próprio, se atirava ao cesto da lenha. Erguia uma orelha, fazia um ar furioso, virava a cama e atacava cada acha como se disso dependesse a soberania do reino.

Nunca apanhou o grilo.

Nem eu. Nestas duas semanas, devo ter-me levantado umas dez vezes. Entrava-me pelos ouvidos dentro, o diacho do grilo. Mas, assim que eu chegava à sala, calava a boca. O Melville, estático em frente ao cesto, com uma pata erguida como se estivesse a caçar lagartixas, rodava os olhos para mim:
– Tu não te mexas, dono, que é hoje que o apanhamos!

Nunca aconteceu. Revirámos a lenha não sei quantas vezes. A lenha acabou e trouxemos mais – o grilo continuou. Mudámos a forra do cesto, sacudimo-la no jardim – nada.

Acabávamos de jantar, sentávamo-nos um instante no sofá, e lá vinha ele:
– Cri-cri.

Ao fim de uns dias ouvimo-lo no quarto de hóspedes. Na noite seguinte, no meu escritório. Cheguei a jurar que o ouvi no meu próprio quarto, enfiado nalgum buraco do peitoril, mas talvez tenha sido um pesadelo.

Todos os dias procurei o estupor do grilo. O Melville procurou-o comigo e sem mim, como um homem com uma missão. Até a Jasmim tentou apanhar o grilo, embora talvez tenha pensado que fossem bolachas.

Até a Catarina o procurou.

O Melville apanhou-o hoje. Surpreendeu-o dentro da despensa, cuja porta me esquecera de fechar. Percebi logo do que se tratava. Quando se tem cães há tempo suficiente, a linguagem corporal diz tudo. Atravessei a cozinha, numa celebração:
– Apanhaste-o, Melville!

O grilo estava ao canto da prateleira, encurralado contra uma caixa de cereais. Imaginei os seus olhinhos assustados. Desejei ter um microscópio apenas para gozar o pânico daqueles olhinhos.
– Ah, malandro, que hoje vais conhecer o teu criador!

Mas o Melville já não teve coração. Fitou-o mais um instante, levantou o focinho para mim e foi-se enroscar na sua caminha.

Daqui a pouco recomeça a cantoria.

Lugar dos Dois Caminhos, 5 de Novembro

No fim, tive de ligar ao Careca. E ele:
– Home’, tá calado. Essa pequena vai sair daqui de barriga cheia.

E eu:
– Tem calma, Zé. Ouve: faz-lhe um arrozinho de feijão.

E ele:
– Home’, tá calado.

O facto é que ela estava cheia de fome. Íamos para a quinta refeição, em três dias consecutivos, e já levava não sei quantos papo-secos no estômago, sorvidos num instinto de sobrevivência.

Nesta ilha, um vegano ainda é uma espécie de alienígena. O que em tempos me teria parecido razoável, sei-o bem. Hoje não parece.

Quer dizer, eu passei a ter cães. Era preciso não possuir sensibilidade nenhuma para que a minha relação com os animais não tivesse mudado. E, ademais, já olhei uma jersey nos olhos. Já a vi olhar-me por entre as suas pestanas.

Tenho conseguido ludibriar a memória do olhar dessa jersey. Mas não é despicienda a ideia de que, um dia, não consiga comer mais nada de origem animal também.

Quanto aos restaurantes da minha terra, se havia um julgamento em relação à dita condição, não se notava. Nem sequer se podia acusar as pessoas de má vontade. Houve um em que o empregado respondeu:
– Não usamos legumes.

Mas outros apresentaram-lhe pratos lindos. Uma pessoa olhava e apetecia tirar um retrato. Já ela via-os chegar e a sua fácies delicada ruía num torvelinho.

Não havia nada para comer. Era como se ser vegano fosse não comer. Tudo se resumia a alface, tomate e uns talinhos de espargos – e, entretanto, nós à volta a comer alcatras.

Da próxima vez que me vir na posição de anfitrião de um grupo de continentais, já sei: hei-de falar com cada chefe de cozinha. Deixar recado não chega.

Desta vez, só me cheguei à frente na última refeição. Ainda por cima íamos ao Careca. Liguei.

E ele:
– Home’, tá calado. Sei muito bem o que vou fazer.

E eu:
– Espera, Zé. Faz-lhe um arrozinho de feijão.

E ele:
– Um arrozinho de feijão, um arrozinho de feijão… E legumes, essa pequena não quer?
– Ouve: toda a gente lhe serviu saladas. A moça deve estar a vomitar verdura.
– Home’, não te metas nisso. Achas que nunca veio aqui nenhum vegetariano?
– Vegano.
– Tá calado.
– Escuta. Faz-lhe um arrozinho de feijão, Zé. E não lhe metas nada de animal. Nem sequer um caldo de carne.
– Eh, huóme, tás tolo ou o que é? Achas que se usa disso numa casa destas?
– Conto contigo, Zé.
– Vai pá porra.

Foi a única vez que a pequena comeu bem.

Publicado no Diário de Notícias

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Arquivado em:Diário de Notícias, Outras

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