• Skip to main content
  • Saltar para o rodapé

Joel Neto

joelneto.com

  • Sobre
  • Notícias
  • Livros
  • Contactos
  • About

Esta manhã conheci uma personagem e ganhei o dia

Abril 25, 2018 POR joelneto.com Deixe um comentário

Lugar dos Dois Caminhos, 25 de Abril

Houve um tempo em que a direita e a esquerda se dividiam entre o 25 de Abril e o 25 de Novembro e isso tinha algum tipo de significado. Chegava a ser respeitável.
Um tipo de esquerda desdenhava do 25 de Novembro e o desdém dele produzia em nós um choque. Um tipo de direita maldizia o 25 de Abril e a maledicência dele produzia em nós um choque. O choque era o fito último de ambos e tinha um valor instrumental. Punha-nos a pensar.

Uma pessoa equilibrada acabava, evidentemente, por chegar à conclusão equilibrada. O 25 de Abril tinha levado ao 11 de Março, realmente tinha, mas acabara com a ditadura e mantinha-se um milagre. O 25 de Novembro tinha-nos trazido ao capitalismo desenfreado e à corrupção, realmente tinha, mas impedira outra ditadura e estava até mais esquecido do que devia.

No fim, ambas as datas pertenciam à gente de bem.

Nada disso acontece agora. Passados 44 anos sobre a revolução – ou golpe de estado, ou deposição do regime, chamem-lhe o que quiserem –, os portugueses habituaram-se às dicotomias.

O manifesto político deixou-se integrar pelo Sporting-Benfica do costume.

Um tipo de esquerda já não desdenha do 25 de Novembro: ignora-o olimpicamente, como se ele não fizesse parte da construção democrática de um país. E um tipo de direita já não maldiz o 25 de Abril porque nem concebe a redenção da data: passa simplesmente à conversa seguinte, que é como se vive qualquer outro dia sem história salvo que não há o que fazer, as televisões estão cheias de celebrações dir-se-ia que litúrgicas e, ainda por cima, as repartições públicas fechadas.

É esse 25 de Abril que, a partir desta janela, nesta freguesia rural desta ilha remota, vejo assinalar hoje – na televisão e na Internet, nos cafés e nas ruas da minha ilha também. Talvez nos tenhamos precipitado até este ponto, nos últimos anos, através da chinfrineira fácil das ditas redes sociais e dos seus sempre pungentes mecanismos de afirmação e pertença. Mas essa, creio, foi apenas a fragilidade imunológica sobre a qual o vírus grassou. A educação deixou de ter resposta para a falta de memória porque o modelo da efeméride está esgotado e ainda ninguém conseguiu encontrar outro.

Daqui até ao regresso às cavernas ainda vai alguma distância, mas vai menos do que já foi. Por mim, nunca cheguei a deitar fora aquela moca de pau de roseira que o meu avô deixou aí no fundo da despensa.

Chaves, 26 de Abril

Passo por Trás-os-Montes para participar num encontro luso-galaico em que já sei que me vão fazer a pergunta: “E você, o que vai fazer no resto da sua vida?” Pode parecer esquisito, mas os festivais literários são assim. E a verdade é que eu gosto da pergunta, porque me permite, desde logo, elogiar a morte.

Elogiar a morte, de facto. Se esta vida não tivesse fim, se não houvesse um fim, nenhum de nós chegaria a levantar-se da cama de manhã. Tudo no mundo em que vivemos se organiza em função da existência da morte. Sem morte não haveria trabalho ou sequer arte. Não haveria urgência nem – muito menos – construção.

Sem fim não haveria até início, bem vistas as coisas. E, se continuasse a haver início, sem haver fim, então a única solução, não podendo nós matarmo-nos uns aos outros, era enchermos o mundo de cárceres onde pudéssemos irmo-nos aprisionando mutuamente, na luta pelos últimos recursos disponíveis, até que, mais cedo ou mais tarde, nada restasse senão um só grande cárcere.

A morte é a própria razão da existência, a verdade é essa. O fim é a própria ordem das coisas. É porque não há tempo para tudo que efectivamente dedicamos tempo a alguma coisa. Por outro lado, não se pode realmente fazer tudo, e o segredo de viver está aí.

Portanto, o que vamos nós fazer no resto da nossa vida? Estabelecer prioridades. Isso e fazer planos até ao último dia. Ande por onde andar, tudo o que procuro é deixar-me numa posição em que possa começar um novo romance na própria semana da minha morte e, ainda assim, na manhã do dia nefasto, tornar a acreditar, por uma última e redentora vez, que esse, sim, será o tal.

Eis tudo quanto aprendi. Não é muito. O que eu espero fazer até ao fim da minha vida é estabelecer prioridades, continuar a fazer planos planos e tratar do meu pomar. Será uma vida boa.

Chaves, 27 de Abril

Esta manhã conheci uma personagem. Tem uns olhos de menino, apesar de à beira dos cinquenta, e a voz serena de quem até perante o desespero pensará duas vezes. A sua profissão é criar quadros de palavras-cruzadas.

Auto-intitula-se cruciverbalista, palavra que eu nunca tinha ouvido, e tem um inimigo sobre todos os outros: o sudoku. Foi o sudoku que começou a afastar as palavras-cruzadas dos jornais e ainda vai ser o sudoku a acabar com elas. O sudoku, o software ou a língua inglesa, com a sua ditadura e as suas uniformizações grosseiras.

Por isso, o meu cruciverbalista decidiu adoptar uma palavra perdida: xurdir (isto é, “fazer pela vida”). Integrou-a no seu discurso. Passeou-a pela rua. Candidatou-a a votações online. Hoje tomávamos juntos o pequeno-almoço e, abrindo o casaco, mostrou-me a sua t-shirt – com a palavra “xurdir” impressa.

Imagino-o personagem de um policial, vestido com a sua t-shirt a dizer “xurdir”. Não o hei-de matar, isso é certo. Só ainda não decidi se não acabarei por fazer dele o assassino.

Outras leituras:

  • Boletim n.º 6: do novo livro «Muito Mais do Que Saudade», escrito a meias com Catarina Ferreira de Almeida, ao podcast «Meridiano 28»
    Boletim n.º 6: do novo livro «Muito Mais do Que…
  • Grande Prémio APE de Literatura Biográfica entregue a Joel Neto na Casa dos Açores de Lisboa
    Grande Prémio APE de Literatura Biográfica entregue…
  • APESAR DA PANDEMIA - 20 de Abril
    APESAR DA PANDEMIA - 20 de Abril

Arquivado em:Diário de Notícias, Escritas

Interações do Leitor

Leave a Reply Cancel reply

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

Footer

SUBSCREVA O BOLETIM

Esteja a par de todas as novidades e tenha acesso a conteúdos exclusivos

Sim, quero subscrever

Copyright © 2021

  • facebook
  • Instagram
Este website usa cookies para melhorar a experiência do utilizador. Quando fechar esta mensagem confirma que concorda com o seu uso.Aceitar Ler mais
Política de cookies & Privacidade

Privacy Overview

This website uses cookies to improve your experience while you navigate through the website. Out of these, the cookies that are categorized as necessary are stored on your browser as they are essential for the working of basic functionalities of the website. We also use third-party cookies that help us analyze and understand how you use this website. These cookies will be stored in your browser only with your consent. You also have the option to opt-out of these cookies. But opting out of some of these cookies may affect your browsing experience.
Necessary
Sempre activado

Necessary cookies are absolutely essential for the website to function properly. This category only includes cookies that ensures basic functionalities and security features of the website. These cookies do not store any personal information.

Non-necessary

Any cookies that may not be particularly necessary for the website to function and is used specifically to collect user personal data via analytics, ads, other embedded contents are termed as non-necessary cookies. It is mandatory to procure user consent prior to running these cookies on your website.

SAVE & ACCEPT