• Skip to main content
  • Saltar para o rodapé

Joel Neto

joelneto.com

  • Sobre
  • Notícias
  • Livros
  • Contactos
  • About

Os grilhões do tempo

Dezembro 2, 2019 POR JoelNeto.Com Deixe um comentário

Versão radiofónica: aqui

A minha relação com os aviões teve fases. Já fui o repórter que aterra de pé no cockpit, em companhias africanas capazes de voar com um dos vidros das escotilhas partido, e também o marido apavorado ao mais pequeno sinal de turbulência – sobretudo depois de uma arremetida com um A-310, não por acaso aqui na Terceira.
Voltar a viver nas ilhas libertou-me da vertigem. Uma pessoa habitua-se aos aviõezinhos da SATA – “avionetas”, como há sempre um turista a dizer bem alto –, e além disso voa tantas vezes aos trambolhões, e desce às cambalhotas, que fica (como se diz) vacinada.
De modo que foi com bonomia que há dias regressei de São Miguel, a que hoje vamos como quem vai ali abaixo à cidade, na urbana. Comigo, trazia ainda o conforto do convívio com leitores e colegas, em mais um festival Arquipélago de Escritores. E, porém, não parecia haver uma só pessoa, em toda a cabina, com um livro na mão.
Folheava-se a revista de bordo. Viam-se séries de televisão. Palrava-se sobre nada. Disfarçava-se o medo da ventania.
Repeti num murmúrio: «Se aquilo que escrevemos não vence os grilhões do seu tempo, terá a força da literatura? Poderá aspirar a ser literatura – será literatura?»
Poucas horas antes, participara num debate em que nos cabia discutir a coexistência entre esta e as chamadas redes sociais. Preocupáramo-nos em tranquilizar as hostes, lembrando que os livros já foram ameaçados pelos jornais, pelo cinema, pela TV, até pelo marco do correio – sobreviveram sempre.
Apesar disso, ali estávamos: o aviãozinho atravessou o mar, mostrou-nos o Pico, sobrevoou a Praia – e, quando aterrou, eu continuei sem descortinar um só livro. Já telemóveis, não houve vivalma que não erguesse um: para conferir as mensagens, os e-mails – e, claro, as redes.
Utilizo-as há uns dez anos. Tenho contas em várias e, evidentemente, já cometi erros. Expus-me de mais e disse tolices. Confundi a beleza e a graçola. Tomei o lado do Mal. Mas, por outro lado, nunca publiquei o clássico post de despedida, num ar de autoimportância: «Meus amigos, é chegada a hora de não-sei-quê, não-sei-que-mais…»
Nunca tive ilusões sobre o que as ditas redes significavam. Elas são uma caricatura da espécie, mais vezes tontas do que profundas, e aquilo de que falam raramente é o amor e a raiva, os mais nobres sentimentos, e antes quase sempre o hedonismo e o ódio, respectivos anjos negros.
Mesmo assim, acrescentaram-me leitores. Os meus livros completam-se nos leitores – são os leitores quem acaba de escrevê-los. E, conquanto as minhas concepções de êxito se mantivessem distintas para o exercício da literatura e a actividade na Internet – e, aliás, a minha preocupação continuasse a ser menos a de dizer: “Eu existo” do que: “Os meus livros existem e vêm daqui” –, tudo estaria bem.
Afinal, eu continuava a acreditar nisso. A literatura enfrentou sempre proibições, tabus, pragas, fomes, depressões. Nunca teve medo. Precisamente porque a ameaçavam foi literatura. E apenas porque prevaleceu foi literatura também.
Mas só quando cheguei ao terminal e verifiquei que permanecia toda a gente a olhar o telemóvel – incapaz de encontrar interesse no outro, na combinação dos elementos ou sequer nas rotinas da chegada –, tive a certeza: não se podem entender totalmente nem a força da preguiça, nem a tentação da fama, nem o risco do populismo (enfim, tudo o que define este tempo) sem se entender primeiro as redes.
Estar lá é o nosso cavalo de Tróia. Porque, entretanto, se não formos capazes de roubar os olhos das pessoas aos ecrãs – ao menos por um momento, ao menos de uma pessoa, ao menos de um filho dessa pessoa–, nada disto que escrevemos terá realmente significado.

* esta crónica integra a rubrica O Fio da Meada, das manhãs da RTP/Antena 1, ocupada por Joel Neto às segundas-feiras. Versão áudio disponível em: https://www.rtp.pt/play/p2057/o-fio-da-meada

Outras leituras:

  • Boletim n.º 6: do novo livro «Muito Mais do Que Saudade», escrito a meias com Catarina Ferreira de Almeida, ao podcast «Meridiano 28»
    Boletim n.º 6: do novo livro «Muito Mais do Que Saudade»,…
  • APESAR DA PANDEMIA - 20 de Abril
    APESAR DA PANDEMIA - 20 de Abril
  • Grande Prémio APE de Literatura Biográfica entregue a Joel Neto na Casa dos Açores de Lisboa
    Grande Prémio APE de Literatura Biográfica entregue a Joel…

Arquivado em:Antena 1, Escritas

Interações do Leitor

Leave a Reply Cancel reply

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

Footer

SUBSCREVA O BOLETIM

Esteja a par de todas as novidades e tenha acesso a conteúdos exclusivos

Sim, quero subscrever

Copyright © 2022

  • facebook
  • Instagram
Este website usa cookies para melhorar a experiência do utilizador. Quando fechar esta mensagem confirma que concorda com o seu uso.Aceitar Ler mais
Política de cookies & Privacidade

Privacy Overview

This website uses cookies to improve your experience while you navigate through the website. Out of these, the cookies that are categorized as necessary are stored on your browser as they are essential for the working of basic functionalities of the website. We also use third-party cookies that help us analyze and understand how you use this website. These cookies will be stored in your browser only with your consent. You also have the option to opt-out of these cookies. But opting out of some of these cookies may affect your browsing experience.
Necessary
Sempre activado
Necessary cookies are absolutely essential for the website to function properly. This category only includes cookies that ensures basic functionalities and security features of the website. These cookies do not store any personal information.
Non-necessary
Any cookies that may not be particularly necessary for the website to function and is used specifically to collect user personal data via analytics, ads, other embedded contents are termed as non-necessary cookies. It is mandatory to procure user consent prior to running these cookies on your website.
GUARDAR E ACEITAR